quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

O Pior Menino da Rua

Jean Genet

Jean Marcel Genet (1910-1986), escritor, poeta e dramaturgo, considerado pela crítica especializada, o poeta do escândalo e da insubordinação. Filho de uma prostitua e pai desconhecido, foi abandonado pela mãe na assistência pública e depois adotado por um casal de Morvan, na Borgonha. Embrenhou no submundo do crime logo cedo, na adolescência já praticava pequenos furtos na sua própria casa e na vizinhança, certamente era o pior menino da sua rua. Após abandonar a família adotiva, passou a juventude em reformatórios e prisões; quase sempre por roubo de cortes de tecidos, camisas e livros; onde afirmou sua homossexualidade. De vida errante, morou em diversas cidades da Europa como mendigo-prostituto, tendo como companheiros uma “matilha” de pessoas marginalizadas pela sociedade: ladrões, prostitutas, travestis, cafetões e muitos outros. Condenado, por crime de morte, à prisão perpétua passou grande parte da sua vida reclusa em diversas cadeias, que paradoxalmente, tornou-se sua fonte inspiradora de grande parte de sua obra literária. Conseguindo o milagre de transformar sua vida marginal e sem esperanças em literatura de inquestionável qualidade, escrita em sangue, suor e esperma. Uma literatura nua e crua, mas sem perder a poesia. A grande virada da sua vida ocorreu em 1943, ao ser apresentado ao filósofo Jean-Paul Sartre e ao poeta e cineasta Jean Cocteau, que logo se tornou seu admirador e encontrou um editor para o livro: Nossa Senhora das Flores (1944), considerado por muitos críticos a sua obra-prima. “Nela, é retratada a solidão do homem e a hipocrisia das relações humanas, fazendo do livro uma autêntica epopéia do mundo marginal”. “É a história heróica de vida e morte de um travesti chamada Divina apaixonada por Mignon, um macho cafetão igualmente ladrão e impostor que lhe impõe traição e abandono”. E se não me falha a memória, é logo no primeiro capitulo, que li a frase mais saborosa do livro, que diz algo mais ou menos assim: “eu fui atraído ao mundo do crime pela virilidade dos homens” e se a frase não é exatamente assim, pelo menos é exatamente assim que vejo a associação do gay e a marginalidade. E tenho a minha própria historia para lhes contar.

Quando criança, eu era tímido, inseguro e titubeante. Tinha o choro fácil e era praticamente autista, somado a tudo isso era gordinho e tinha uma sensibilidade à flor da pele. Tudo me amedrontava, tinha medo do escuro, de bichos, de gente, de beijos e até de desenhos animado. Eu: Alemberg Santana preferia brincar sozinho, a ter que aturar outras crianças, pois no meu mundo solitário não havia lutas, disputas e nem necessidade de marcar território, o mundo era todo meu, só meu e do meu jeito. Quis o destino que eu crescesse rapidamente e como o meu mundinho já não mais me cabia, então comecei a explorar outros mundos e descobri cedo, que o mundo não tem fronteiras. Descobri um mundo de cores, sabores, aromas, sensações e desejos, muitos desejos. Desejos por meninos – pelo meu “melhor amigo”, que me arrepiava e pelo “pior menino da rua” , que me enlouquecia. Meu “melhor amigo” entrava e sai lá de casa sem pedir licença, o “pior menino da rua” era proibido de entrar lá em casa. Meu “melhor amigo” era elogiado por todos e tirava nota dez, o “pior menino da rua” era odiado por todos e só ia para escola quando queria, o “pior menino da rua” era livre e nós éramos escravos de horários, normas e expectativas. Eu tinha que estudar para ser médico e meu “melhor amigo” para ser engenheiro (acho) e o “pior menino da rua” estudava quando queria e pelo visto ele tinha determinado que poderia ser qualquer coisa ou nada, mas os adultos diziam a boca pequena, que ele já era alguma coisa: era marginal.

Eu era “o menino bonzinho”. Educado, comportado, estudioso, criativo e obediente. Todos os atributos de bondade me pertenciam e os de maldade ao “pior menino da rua”: danado, mal educado, mal criado e pervertido. Eu era o anjinho e ele o capeta e éramos fieis aos nossos papeis. Fiz praticamente tudo que um “menino bonzinho” tinha que fazer para ser o bonzinho: tomei tônicos horríveis para poder “crescer bonito e saudável”, decorei a letra inteira do Hino Nacional, fiz curso de catecismo, caligrafia, datilografia etc, afinal era assim que tinha que ser e eu era o “menino bonzinho” e obediente. O “pior menino da rua” parecia não obedecer ninguém, além dos seus impulsos, era livre das convenções, ou melhor, ele era a própria contravenção e era o meu ídolo. Ele falava palavrões, batia nos outros meninos, tocava as companhias das casas e saia correndo, jogava pedra nas vidraças e nos loucos, faltava as aulas e só tirava notas baixas, quebrou perna, braço, cabeça e não parava dentro de casa. Ousei cometer algumas transgressões, mas nada que se comparassem as travessuras do “pior menino da rua”, afinal eu era o “menino bonzinho”

Aos 12 amos de idade eu continuava gordinho e tinha ganhado um par de óculos, para corrigir minha miopia de dois graus, estava dando intenção e direção para a minha sexualidade que oscilava entre meninos e meninas. Dei o meu primeiro beijo na minha vizinha, mas desejava mesmo era beijar meu “melhor amigo” e fazer sexo com o “pior menino da rua”. Como eu era o “menino bonzinho”, não fiz nem uma coisa nem outra, pelo menos, não aos 12 anos. E assim me tornei, com a ajuda dos outros, um “menino bonzinho” que beija, namora e hoje é casado com outro “menino bonzinho”, mas que nunca deixou de admirar e às vezes desejar, “os piores meninos da rua”.

“Os piores meninos da rua” são inconseqüentes, irresponsáveis, transgressores, sedutores, aproveitadores, preguiçosos, malandros, etc. Possuem corpos deliciosamente construídos em academias, campinhos de futebol ou sobre as ondas. Eles resolvem as brigas no muro, não levam desaforo para casa, não ligam para moda e nem etiquetas, não estão nem aí se Madonna vem ao Brasil e quando saem nos jornais, saem nas páginas policiais e são o oposto dos “meninos bonzinhos” que freqüentam as colunas sociais. ”Meninos bonzinhos” para continuarem bonzinhos rejeitam neles tudo que é próprio do “pior menino da rua” e vice versa. Ambos buscam no outro aquilo que lhe foi negado.




Meu convívio com “o pior menino da rua” durou pouco tempo. Tempo suficiente para eu presenciar e até ser conivente com alguns pequenos delitos dele. Ele saiu cedo da nossa cidade e foi aventura-se em outros mundos, em um dos seus poucos retornos me contou que na capital do nosso estado, havia conhecido uma boite onde “só tinha homem e os caras se beijavam na boca”. Soubemos depois que ele foi preso, depois foi solto, foi preso novamente e depois assassinado. “O pior menino da minha rua” teve uma vida breve e intensa.

Por outro lado Genet teve uma vida longa e gloriosa, com ajuda dos novos amigos consegui se livrar da condenação da prisão perpétua e produziu cerca de 40 obras, entre elas está O Milagre da Rosa (1945-1946), Pompas Fúnebres e Querelle – Amar e Matar (1947), que Rainer Fassbinder transformou em filme, e com a peça O Balcão (1947) revelou-se um dramaturgo de profundidade intelectual, precursor do teatro do absurdo. Também dirigiu um filme, Um Canto de Amor, em 1950, e escreveu vários roteiros. Eternizou sua vida em Diário de um Ladrão (1949), um romance autobiográfico, onde confessa aberta e escandalosamente ter sido ladrão e homossexual.

Dedico esse texto ao meu amigo Vilberto (in memória), que não soube separa as fronteiras do desejo da fantasia e foi brutalmente assassinado por seu companheiro, com um taco de beisebol.

 “Provavelmente não há um só homem que não deseje se tornar fabuloso, 
numa escala ampliada ou reduzida”. 
Genet

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